
Vamos começar com uma pergunta que faço há anos e que raramente recebe resposta correta: por que dois especialistas em sobrevivência, quando colocados na natureza selvagem, perdem tanto peso em tão pouco tempo?
Há um reality show produzido pelo canal Discovery chamado “Largados e Pelados”. Em cada episódio, um casal diferente de especialistas em sobrevivência é obrigado a passar 21 dias em um ambiente selvagem, sem roupas ou utensílios modernos. O desafio é lutar por comida, suportar as intempéries, encontrar ou produzir água potável.
Não importa o lugar – savanas africanas, florestas equatoriais, florestas temperadas, ilhas remotas, praias isoladas. Invariavelmente, nesse curto período de três semanas, todos os participantes passam por sérias necessidades e perdem muito peso: entre 8 e 20 quilos cada um. Alguns precisam desistir diante do rigoroso teste de sobrevivência.
A resposta óbvia é: “porque não comem”. Mas essa resposta está incompleta. A pergunta real é: por que eles não comem? São pessoas preparadas, especialistas em sobrevivência, em ambientes desafiadores.
E aqui está a resposta que muda tudo: porque o alimento jamais esteve disponível na natureza de forma abundante. Jamais.
Nossa existência começou na África há mais de 4 milhões de anos, em um período batizado de Plioceno. Pequenas populações de hominídeos se concentravam nas planícies de savanas do sul e do leste do continente.
Análises genéticas realizadas em 2016 concluíram que todas as populações atuais não africanas de seres humanos descendem de uma única população que emergiu da África entre 70 e 150 mil anos atrás.
Durante quase 3 milhões de anos, os hominídeos se alimentaram de plantas que coletavam e da caça de pequenos animais. Na dieta estavam frutos silvestres como figo, raízes e tubérculos, folhas comestíveis, ovelhas selvagens, coelhos, e mesmo grandes insetos. Em sua trajetória de conquista por outros continentes, o Homo Sapiens migrou para o Oriente Médio, Europa, Ásia e finalmente para a Austrália e América, mas continuava a se alimentar da mesma forma: coletando plantas silvestres e caçando animais selvagens.
E durante todo esse período, o alimento era escasso. Não havia geladeiras, armazéns, mercados. A agricultura ainda não tinha sido inventada. Não se produzia alimento em qualquer tipo de escala. A natureza não fornecia comida de forma abundante. Se pensarmos nas frutas, os pomares que conhecemos hoje não existiam – e os pássaros e os macacos chegavam antes.
Por evolução e seleção natural, chegamos aos dias de hoje com a mais impressionante máquina conhecida em termos de eficiência energética: o corpo humano. Devolvemos ao ambiente uma pequena fração do que consumimos. O organismo humano foi talhado para aproveitar quase tudo o que consegue ingerir e digerir.
O que não é prontamente utilizado é reservado na forma de gordura corporal. E isso não é um defeito – é design intencional criado pela seleção natural ao longo de milhões de anos.
Ficou claro que encontrar alimentos era uma tarefa diária difícil. E quando os líderes caçadores-coletores voltavam com comida mais farta, o pequeno grupo se saciava de tudo o que era possível, ali mesmo, na hora. Não havia formas de conservar alimentos. Depois dessas refeições, todos se deitavam ou se protegiam, quietos, para fazer a digestão e economizar o máximo de energia.
E em que momento o grupo voltava a procurar comida? Quando a fome passava a apertar novamente. Não antes. Não de forma planejada como conhecemos hoje, marcada no relógio.
Durante um espaço de tempo extraordinário, os nossos ancestrais se alimentavam de forma irregular, em períodos bem espaçados de tempo. Refeições mais fartas talvez uma vez por dia, talvez uma vez a cada dois ou três dias. Em outros casos, comia-se o que estava disponível, sempre muito pouco.
Tudo isso teve forte impacto na nossa formação e evolução genética. Essas mudanças, as alterações genéticas, se dão em longos espaços de tempo, em incontáveis e sucessivas gerações. Na natureza, os processos não ocorrem de forma inesperada, de repente, de forma súbita.
Agora vamos avançar no tempo para aproximadamente 10 mil anos atrás, quando houve a criação da agricultura. Os homo sapiens começaram a dedicar quase todo o tempo e esforço em manipular algumas espécies selecionadas de plantas e animais.
Hoje, cerca de 95% das calorias que alimentam a humanidade vêm desse grupo seleto e pequeno de plantas e animais que os nossos ancestrais domesticaram em um espaço de 5 ou 6 mil anos. Dos milhares de espécimes que eram coletados ou caçados, apenas alguns eram adequados à agricultura e pecuária, e se encontravam em locais específicos onde ocorreram as revoluções agrícolas.
Cientistas e especialistas concordam que a Revolução Agrícola foi um enorme salto para a humanidade, mas de forma nenhuma significou uma dieta melhor. A Revolução Agrícola apenas proporcionou uma explosão populacional. Hoje comemos menos variedade, mas em grandes quantidades.
Vamos colocar isso em uma escala gráfica para entender a dimensão do descompasso. Imagine uma linha de tempo em que 3,5 milhões de anos foram transformados em 12 meses. Isso dá aproximadamente 300 mil anos para cada mês.
Pense em uma régua de 12 centímetros, onde cada centímetro corresponde a 300 mil anos. Lá no início da régua estão os hominídeos Ardipithecus e Australopithecus, recém-formados bípedes. Seis meses depois na nossa escala, no meio da régua – ou seja, 2 milhões de anos depois – surge o Homo Habilis, e quase 1 milhão de anos depois, o Homo Erectus. Foi nesta fase que surgiu o fogo, e com ele o cozimento dos alimentos. Logo em seguida, o uso de roupas.
No último mês da nossa escala reduzida, no centímetro final, é que surgiu o Homo Sapiens, há cerca de 300 mil anos. Vale ressaltar novamente que a natureza não dá passos abruptos ou súbitos. Essas sucessões evolutivas, cada pequena mudança no nosso organismo, ocorreram ao longo de centenas de gerações.
E aqui está o dado mais impressionante: na nossa escala reduzida, a agricultura e a pecuária surgiram nas últimas 45 horas. Uma minúscula fração no cenário evolutivo. Na nossa régua, significaria um terço de milímetro.
Algo ainda mais surpreendente: o açúcar, um dos cinco alimentos mais consumidos em todo o mundo na atualidade, surgiu na nossa escala somente nas últimas 3 horas – ou precisamente, há pouco mais de 500 anos. É algo recente demais na nossa vida evolutiva.
Agora a questão que se impõe: o nosso corpo, a nossa fisiologia, conseguiu se adaptar às rápidas mudanças de cardápio e de hábitos alimentares?
A resposta é simples: não. Logicamente que não.
Durante milhões de anos, o nosso organismo evoluiu para ser uma máquina acumuladora excepcional de reservas quando a comida era escassa. Em um curtíssimo espaço de tempo comparado a toda a nossa evolução, tornamos a comida abundante, disponível e barata.
Qual o impacto disso na nossa saúde? Começando pela obesidade, se estendendo por todas as doenças modernas, males e distorções orgânicas que simplesmente não existiam há mil, dois mil, cinco mil anos.
Aqui está o descompasso fundamental que explica muitas das nossas dificuldades com peso e saúde: temos um corpo projetado por 3 milhões de anos de escassez operando em um ambiente de fartura que existe há apenas algumas décadas.
O corpo ainda opera como se a próxima refeição fosse incerta. Quando comida está disponível, o impulso profundo é consumir e estocar. Quando há excesso calórico, o corpo faz exatamente o que foi programado para fazer durante milhões de anos: transforma em gordura corporal para uso futuro.
Não é falha moral. Não é falta de força de vontade. É biologia ancestral encontrando ambiente moderno.
Os especialistas em “Largados e Pelados” perdem 8 a 20 quilos em 21 dias porque estão experimentando a realidade que moldou o nosso corpo. Eles estão vivendo nas condições para as quais fomos otimizados. E nessas condições, gordura corporal é rapidamente mobilizada porque não há excesso calórico entrando.
Quando voltam para o mundo moderno de abundância, o corpo deles – assim como o nosso – volta a fazer o que foi programado para fazer: acumular reservas.
Entender esse descompasso não resolve o problema automaticamente. Mas fornece framework diferente para pensar sobre peso, alimentação e saúde.
Em vez de lutar contra o corpo como se fosse inimigo que sabota objetivos, pode ser útil reconhecer que o corpo está fazendo exatamente o que foi programado para fazer. O desafio é criar estratégias que trabalhem com a biologia ancestral em vez de contra ela.
Isso pode significar estruturar alimentação de formas que se aproximam mais de padrões ancestrais. Pode significar reconhecer que o impulso de comer quando comida está disponível é normal e criar ambientes onde comida ultraprocessada simplesmente não está disponível. Pode significar períodos mais longos entre refeições que se aproximam mais de como os nossos ancestrais comiam.
Não há fórmula única. Mas compreender que temos corpo de caçador-coletor vivendo em mundo de supermercado 24 horas é ponto de partida para estratégias mais realistas.
Cuide da sua saúde física. Porque ninguém fará isso por você.