
Vamos começar com uma pergunta que raramente é feita de forma direta: se remédios são feitos para curar doenças, por que tantas pessoas tomam os mesmos medicamentos por décadas, até o fim da vida?
Se você tem mais de 60 anos, há grande probabilidade de tomar remédios para controlar a pressão arterial e também para manter baixos os níveis de colesterol. Durante quanto tempo terá de tomar esses remédios?
Por todo o resto da vida, responde o médico.
Mas espere um momento. Remédios não são feitos para curar doenças? Então por que é necessário tomar remédios indefinidamente, até morrer?
A resposta revela algo importante sobre como a medicina moderna funciona – e sobre as escolhas que muitas pessoas fazem.
Há toda uma classe de medicamentos criada para remediar, para controlar sintomas, não para agir nas causas profundas. Eles tornam a doença suportável ou aceitável. Permitem que a pessoa continue vivendo de forma relativamente normal apesar da condição subjacente.
Isso não é inerentemente ruim. Para muitas condições, especialmente aquelas com componente genético forte ou dano irreversível já estabelecido, controlar sintomas pode ser a melhor opção disponível. Qualidade de vida importa.
Mas vale questionar: em quantos casos a condição sendo tratada tem raiz em padrões de vida modificáveis? E em quantos desses casos a pessoa está genuinamente disposta a fazer as mudanças necessárias?
Do ponto de vista de negócios, medicamentos que controlam condições crônicas representam o que se chama de “faturamento por recorrência”. É um modelo econômico em que se paga por um produto ou serviço enquanto o consumir.
No caso desses medicamentos, potencialmente para sempre, ou até a pessoa decidir parar com eles.
No Brasil, o mercado farmacêutico vem crescendo de forma sistemática na faixa dos dois dígitos por ano – muito acima da economia de forma geral. Isso reflete, em parte, o envelhecimento da população. Mas reflete também a crescente prevalência de doenças crônicas relacionadas a estilo de vida.
É importante ser claro: não estou sugerindo conspiração maligna onde indústria farmacêutica deliberadamente mantém pessoas doentes. A realidade é mais nuançada e envolve responsabilidade compartilhada.
A indústria farmacêutica, assim como qualquer indústria, responde a demandas do mercado. E há demanda massiva por soluções convenientes que permitam às pessoas continuarem vivendo como vivem enquanto controlam as consequências desse estilo de vida.
Mudar alimentação profundamente é difícil. Estabelecer rotina consistente de exercícios é difícil. Gerenciar estresse crônico é difícil. Dormir adequadamente em mundo de estímulos constantes é difícil.
Tomar pílula diária é fácil.
Então quando indústria desenvolve medicamentos que controlam pressão arterial, colesterol, glicemia, permitindo que pessoa continue comendo o que sempre comeu, continue sedentária, continue estressada – há mercado gigante esperando por isso.
Não é a indústria forçando medicamentos em pessoas relutantes. É a indústria fornecendo exatamente o que milhões de pessoas querem: solução que não exige mudança fundamental de hábitos.
Há tendência humana profunda de buscar soluções fáceis para problemas complexos. Fórmulas mágicas. Pílulas que resolvem sem esforço.
Essa tendência não é criada pela indústria – ela apenas a explora. E “explorar” aqui não precisa ter conotação negativa. É simplesmente responder à demanda real.
Quantas pessoas genuinamente prefeririam fazer mudanças profundas em alimentação, movimento, sono, gerenciamento de estresse se essas fossem as únicas opções disponíveis? E quantas, quando apresentadas com opção de controlar problema através de medicamento, escolhem o medicamento porque é mais conveniente?
Não há julgamento moral aqui. Cada pessoa tem direito de fazer as próprias escolhas considerando suas circunstâncias, prioridades e valores.
Mas vale reconhecer que muitas vezes a escolha é consciente: aceitar medicamento de longo prazo em vez de fazer mudanças de estilo de vida que seriam mais fundamentais mas também mais exigentes.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, há todo um ecossistema formado por diversas indústrias interessadas em saúde: a indústria médica, a indústria farmacêutica, a indústria alimentícia, a indústria do esporte. E onde há indústria, há interesses econômicos envolvidos.
Mas novamente: esses interesses não existem no vácuo. Existem porque há demanda.
A obesidade, por exemplo, é um dos maiores problemas de saúde pública no mundo. Hoje cerca de 27% dos habitantes do planeta estão com sobrepeso e 9% são obesos. Há 670 milhões de pessoas diabéticas – uma em cada 11 habitantes.
Essas condições se desenvolvem de forma multifatorial. Não têm origem única. São resultado de diversos fatores ambientais, comportamentais e genéticos interagindo ao longo de décadas.
E muitas dessas condições estão profundamente ligadas a padrões de vida que se afastaram radicalmente de como os seres humanos viveram durante a maior parte da evolução. Como vimos anteriormente: corpo desenhado para escassez operando em ambiente de fartura constante.
Medicamentos que controlam sintomas têm papel legítimo. Para pessoa com hipertensão severa, medicamento que controla pressão arterial pode literalmente salvar vida enquanto mudanças de estilo de vida são implementadas. Para diabético tipo 2 com glicemia perigosamente alta, medicamento que reduz glicose pode prevenir dano irreversível.
O problema não é a existência desses medicamentos. O problema é quando se tornam substituto permanente para mudanças de estilo de vida em vez de ponte temporária enquanto essas mudanças são feitas.
E frequentemente isso acontece não por imposição médica ou conspiração industrial, mas por escolha implícita ou explícita da própria pessoa. Médico pode recomendar fortemente mudanças de alimentação e exercício. Mas se pessoa não implementa essas mudanças, medicamento se torna solução de longo prazo por falta de alternativa prática.
A OMS define saúde como “estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas ausência de doenças”.
Essa definição tem sido alvo de inúmeras críticas, pois um estado de completo bem-estar faz com que a saúde seja algo ideal, inatingível, impossível de se estabelecer metas claras.
E isso cria espaço interessante para indústrias diversas. Se saúde perfeita é inalcançável mas deve ser buscada, sempre há espaço para mais produtos, mais serviços, mais intervenções que prometem aproximar dessa meta impossível.
Novamente: não é conspiração. É dinâmica natural de mercado respondendo a aspiração humana legítima por saúde e bem-estar.
Então onde isso nos deixa? Com reconhecimento de que responsabilidade é compartilhada.
Indústria farmacêutica tem responsabilidade de desenvolver e comercializar medicamentos de forma ética, com transparência sobre benefícios e limitações.
Médicos têm responsabilidade de educar pacientes sobre causas subjacentes de condições crônicas e sobre mudanças de estilo de vida que poderiam endereçar essas causas.
E indivíduos têm responsabilidade de fazer escolhas informadas sobre saúde, reconhecendo que frequentemente existe trade-off entre conveniência de medicamento versus esforço de mudança de hábitos.
Muitas pessoas escolhem, consciente ou inconscientemente, a conveniência. E está tudo bem – desde que seja escolha informada, não resultado de falta de informação sobre alternativas.
Vale considerar: para muitas das condições crônicas mais comuns – obesidade, diabetes tipo 2, hipertensão, doenças cardiovasculares – há evidência substancial de que mudanças significativas em alimentação, movimento, sono e gerenciamento de estresse podem não apenas melhorar sintomas mas potencialmente reverter a condição subjacente.
Isso não é segredo. A informação está disponível. O desafio não é falta de conhecimento. O desafio é implementação.
E implementação é difícil porque requer mudança profunda em hábitos estabelecidos ao longo de décadas, frequentemente em contexto social que não suporta essas mudanças, com disponibilidade constante de opções que trabalham contra objetivos de saúde.
Então muitas pessoas, racionalmente, decidem que é mais viável controlar condição através de medicamento do que transformar vida. Essa não é falha moral. É cálculo prático considerando todas as circunstâncias.
Mas para cada pessoa vale perguntar: será que os medicamentos que tomo estão controlando condição que poderia ser endereçada de forma mais fundamental através de mudanças de estilo de vida? E se sim, estou genuinamente indisposto a fazer essas mudanças, ou simplesmente nunca considerei seriamente essa possibilidade?
Não há resposta certa universal. Cada situação é única. Mas a pergunta vale ser feita.
Porque tomar medicamento para controlar sintoma enquanto causa subjacente continua operando significa que a condição frequentemente piora ao longo do tempo, exigindo doses maiores ou medicamentos adicionais.
Em contraste, endereçar causa subjacente – quando possível – potencialmente permite redução ou eliminação de medicamentos ao longo do tempo.
O objetivo não é demonizar medicamentos ou indústria farmacêutica. O objetivo é reconhecer que existem frequentemente múltiplas abordagens para condições crônicas, cada uma com seus trade-offs.
E fazer escolhas informadas exige entender não apenas o que medicamento faz, mas também o que ele não faz. Ele controla sintoma ou endereça causa? Ele é ponte temporária ou solução permanente? Existem alternativas que exigiriam mais esforço mas potencialmente ofereceriam resultados mais fundamentais?
São perguntas que vale fazer. As respostas vão variar de pessoa para pessoa e de condição para condição.
Cuide da sua saúde física. Porque ninguém fará isso por você.