O dia que mudou tudo: quando a rejeição vira combustível

Saúde espiritual1 mês atrás14 Visualizações

Aos 11 anos, tive consciência absoluta de quão diferente eu era. Não a diferença confortável de ser único, especial, escolhido. A diferença brutal de ser inadequado, deslocado, rejeitado.

Aquele foi, simultaneamente, o pior e o melhor dia da minha vida.

Vale a pena contar essa história porque ela explica muito sobre quem me tornei e por que dedico minha existência a ajudar pessoas a cuidarem de si mesmas.

A grande mudança

Minha vida escolar até os 11 anos tinha sido em escolas públicas de São Paulo. E preciso fazer um parêntese importante: nos anos 1970, escolas públicas paulistas ofereciam ensino de qualidade real. Lembro de conteúdos que aprendi na quarta série da pública que só voltei a ver na quinta série da particular.

Era ambiente diverso. Todo tipo de criança – ricas, pobres, brancas, pardas, negras. E o melhor: eram apenas crianças. Um bando de gente pequena aprendendo junto, brincando nos pátios, sem consciência ainda das hierarquias cruéis que construiriam depois.

Mas meu pai estava crescendo na empresa. Passou a ter condições de pagar ensino numa das chamadas escolas de elite de São Paulo. Prestei provas seletivas. Concorri com mais de 300 candidatos.

Passei em 10º lugar.

Refletindo agora, isso foi notável. Minha base vinha inteiramente de escolas públicas. Mas na época eu não tinha dimensão alguma do significado disso.

O primeiro dia

Minha ansiedade estava insuportável. De casa até a escola: 40 minutos de carro. Chegando lá, nunca tinha visto tanta criança concentrada. Quase 2.500 alunos em terreno imenso repleto de quadras esportivas.

Levamos 10 minutos, minha mãe e eu, só para localizar minha sala. Ela me deixou na porta com beijo rápido de boa sorte.

Fiquei observando mais de 30 crianças chegarem e tomarem lugares numa algazarra ensurdecedora. Para eles, festa de reencontro – já eram colegas antigos. Para mim, tudo desconhecido. Colegas estranhos. Ambiente estranho. Códigos sociais que eu não compreendia.

A única coisa que sabia: meu tio era diretor da escola. Meus primos estudavam lá. No planejamento das aulas havia algo que eu conhecia – o Recreio. Eu não via a hora de chegar naquele momento para procurar meu primo Ique, de Henrique. Ele infalivelmente me socorreria daquela solidão.

O grito que quebrou algo

Depois de muita procura, encontrei Ique sentado sobre uma cerca baixa ao lado da quadra de futebol. Estava sorridente, cercado de amigos, provavelmente contando como tinham sido suas férias.

Ao me ver chegando, sua expressão mudou completamente. Ele não sabia que eu tinha sido aceito na escola. Apontando para mim, começou a gritar: “Veja quem vem aí, o Américo Pisca-pisca!”

Nada de “esse é meu primo”. Nada de “vem conhecer meus amigos”. Durante os minutos que permaneci ali, experimentei bullying destilado – assédio moral, intimidação, humilhação. Fui salvo pelo sinal estridente anunciando fim do recreio.

Mais ansioso ainda e completamente atônito, voltei para sala.

A humilhação continuou

Na programação: duas aulas seguidas de educação física. Sinceramente, eu não fazia ideia do que aquilo significava. No primário das públicas, atividades físicas eram brincadeiras – pega-pega, queimada, bolinha de gude. Mas handball, volleyball, basquete, calistenia – termos completamente estranhos.

Os 130 garotos de todas as turmas reunidas da 5ª série foram levados a um pátio enorme. Professor Clodoaldo – 1,70 m de altura por outros 1,7 m de ombros – mandou formarmos duas fileiras. O objetivo: avaliar aptidão física através de calistenia.

Flexões de braços. Abdominais. Polichinelos. Dorsais. Agachamentos. Barra. Uma fila praticava enquanto a outra contava. Depois invertia. Aqueles resultados seriam confrontados com exame ao final do ano para medir evolução.

Dos mais de 130 meninos, só não fui pior que o Fábio! Guardo esse nome com gratidão até hoje – ele me salvou de humilhação ainda mais acentuada.

Ali estava eu: garoto novo, repleto de tiques nervosos incontroláveis, péssima aptidão física, publicamente humilhado pelo próprio primo. Definitivamente, o estranho era eu.

A volta para casa

Voltei de ônibus escolar. Apesar de reconhecer rostos que também estavam em minha classe, sentei no último banco, no fundo, completamente isolado. E passei os 40 minutos de trajeto refletindo sobre tudo aquilo. Aquele dia me deu consciência plena sobre desigualdades, sobre desafios, sobre inadequação social. E mudou minha trajetória para sempre.

Por que rejeição dói tanto

Décadas depois, compreendo a dimensão evolutiva daquele sofrimento. Nosso cérebro foi moldado por milhões de anos vivendo em tribos de 30 a 150 pessoas. Nesses grupos, pertencimento não era luxo ou preferência – era questão de sobrevivência literal.

Ser rejeitado pela tribo significava morte quase certa. Impossível caçar sozinho. Impossível se defender de predadores. Impossível sobreviver a doenças ou ferimentos sem apoio do grupo. Por isso a rejeição social ativa no cérebro exatamente as mesmas áreas neurológicas que processam dor física. Não é metáfora poética – rejeição dói neurologicamente da mesma forma que um ferimento.

O problema: o mundo moderno multiplicou infinitamente as oportunidades de rejeição – escolas com milhares de alunos, pressão social constante, comparações intermináveis, avaliações públicas brutais – mas não atualizou nossa capacidade neurológica de processar isso.

Aquele garoto de 11 anos estava experimentando descompasso brutal entre cérebro tribal e ambiente social moderno hostil.

A transformação

Mas preciso te contar o resto da história. Aquela jornada de transformação começou exatamente naquele dia de humilhação máxima. Eu virei hiperatleta ainda jovem. Aprendi a controlar Síndrome de Tourette. Desenvolvi resiliência que me permitiu enfrentar desafios ainda maiores durante décadas seguintes.

E meu primo Ique? Não sinta raiva dele. Ele é hoje um dos caras mais especiais que conheço. Um primo querido. Estamos sempre trocando ideias, fazendo negócios, compartilhando vida. Ele também era apenas criança de 12-13 anos tentando navegar seu próprio mundo social complexo, protegendo seu status frágil no grupo.

O poder silencioso do amor-próprio

Aqui está a verdade mais importante que aprendi em décadas: desafios nos fazem crescer. Como dizia meu avô, “reforçam nosso couro”. Nos preparam para obstáculos ainda maiores. Mas há pré-requisito fundamental: amor-próprio.

Não estou falando de arrogância vazia ou narcisismo patológico. Estou falando de olhar para si com o mesmo carinho, a mesma compaixão, a mesma paciência infinita que você dedicaria a alguém que ama profundamente. É sobre reconhecer suas vulnerabilidades sem vergonha paralisante. Aceitar suas limitações sem resignação covarde. Celebrar suas conquistas sem comparação destrutiva com outros.

Quem não se gosta genuinamente, não se ama de verdade, não supera. Simples assim.

O convite

Olhe para si. Olhe de verdade. Olhe para dentro com profundo carinho, não com julgamento cruel. Reflita sobre seus desafios – pequenos, médios, grandes – que teve na vida, que continua tendo, que impactaram sua saúde física, mental, emocional.

Esses desafios não aconteceram para te destruir. Aconteceram para te preparar. Mas só vão cumprir esse propósito evolutivo se você decidir cuidar de si mesmo com seriedade e dedicação que isso demanda.

Aquele dia horrível de rejeição me ensinou algo precioso: quando você é rejeitado pelo mundo, tem duas escolhas. Pode aceitar o veredito e definhar. Ou pode usar aquilo como combustível para construir algo extraordinário. Eu escolhi a segunda opção.

E você? Cuide de sua vida. Porque ninguém fará isso por você.

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