
Por definição, autoimunidade é falha funcional onde sistema imunológico não consegue distinguir antígenos de tecidos saudáveis e acaba atacando células normais do próprio organismo. Em doenças como artrite reumatoide, diabetes tipo 1, esclerose múltipla e lúpus, o corpo literalmente está em guerra contra si mesmo. Causas são misteriosas, frequentemente ligadas a fatores genéticos, ambientais ou combinação ainda não completamente compreendida.
Mas há forma muito mais comum e insidiosa de autoimunidade que provavelmente está acontecendo no seu corpo agora mesmo: inflamação crônica de baixo grau. Não é doença autoimune clássica diagnosticável, mas opera com lógica perturbadoramente similar – sistema imunológico perpetuamente ativado atacando tecidos que deveria proteger.
E diferente de doenças autoimunes geneticamente determinadas, essa você está ativamente alimentando todos os dias.
Durante cerca de 300 mil anos de evolução humana, seleção natural criou sistema imunológico extraordinariamente sofisticado. Mas esse sistema foi calibrado para ameaças específicas do ambiente paleolítico: parasitas intestinais, ferimentos por predadores ou conflitos tribais, infecções bacterianas de água contaminada, fungos de alimentos mal conservados.
Resposta inflamatória aguda – vermelhidão, calor, inchaço, dor – é mecanismo protetor brilhante quando você tem ferimento real. Inflamação concentra recursos imunológicos no local da ameaça, acelera cicatrização, combate infecção. Em ambiente ancestral, inflamação era episódica e resolutiva. Você se machucava, sistema imunológico reagia intensamente por dias ou semanas, ameaça era neutralizada, inflamação cessava.
Problema é que hoje seu corpo enfrenta ameaças que não existiam no paleolítico e para as quais sistema imunológico não tem protocolo adequado. Então ele faz o que sabe fazer: ativa resposta inflamatória. Mas como ameaças modernas são constantes e não resolvíveis por inflamação, seu corpo mantém guerra perpétua de baixa intensidade contra si mesmo.
Comida ultraprocessada é alienígena do ponto de vista evolutivo. Ancestrais comiam talvez 220 a 280 alimentos diferentes ao longo do ano – carnes de caça, raízes, folhas, frutas sazonais, ovos ocasionais. Nada com corantes artificiais, conservantes químicos, óleos vegetais refinados, açúcares concentrados além do que ocorre naturalmente em frutas maduras.
Quando você consome ultraprocessados regularmente, sistema imunológico intestinal – que evoluiu para identificar e neutralizar patógenos reais – fica confuso. Detecta moléculas que não reconhece como comida legítima e ativa resposta inflamatória. Como você come essas substâncias três vezes por dia, todo dia, inflamação nunca cessa. Torna-se crônica.
Mesmo lógica se aplica ao estresse psicológico prolongado. Sistema de resposta ao estresse evoluiu para ameaças agudas e físicas – encontro com predador, conflito violento com grupo rival, escassez temporária de alimentos. Nesses cenários, cortisol e adrenalina elevados fazem sentido: mobilizam energia, aumentam alerta, preparam corpo para luta ou fuga.
Mas quando você vive sob estresse crônico – prazos de trabalho perpétuos, preocupações financeiras constantes, sobrecarga de informações, isolamento social em ambiente urbano denso – corpo mantém níveis elevados de hormônios de estresse indefinidamente. Cortisol cronicamente alto suprime função imunológica normal mas paradoxalmente mantém inflamação de baixo grau. Seu corpo interpreta estresse psicológico como ameaça física contínua e mantém modo de combate ativado.
Ancestrais caminhavam entre 20 e 40 quilômetros por dia buscando alimento, água, lenha. Corpo humano foi otimizado para movimento constante de baixa intensidade intercalado com explosões ocasionais de atividade intensa – perseguir presa, fugir de predador, carregar carga pesada.
Quando você passa 12 horas sentado, sistema cardiovascular e metabólico entram em estado de confusão. Fluxo sanguíneo estagnado, metabolismo lento, acúmulo de ácidos graxos não metabolizados na corrente sanguínea. Corpo interpreta isso como disfunção e ativa resposta inflamatória tentando “consertar” problema que na verdade requer movimento, não inflamação.
Músculos inativos liberam menos miocinas – proteínas anti-inflamatórias que músculo em atividade produz naturalmente. Então sedentarismo não apenas deixa de produzir substâncias protetoras como cria ambiente pró-inflamatório.
Durante milhões de anos de evolução de mamíferos, ritmo circadiano foi sincronizado com ciclo solar. Escurecia, corpo produzia melatonina, temperatura corporal diminuía, sistemas entravam em modo de reparo e manutenção. Clareava, melatonina cessava, cortisol aumentava, corpo despertava.
Hoje você bombardeia retinas com luz artificial até 23h, dorme 5 ou 6 horas fragmentadas checando celular no meio da madrugada, acorda com alarme artificial antes do amanhecer. Ritmo circadiano – que regula não apenas sono mas praticamente todos os processos metabólicos e imunológicos – fica completamente dessincronizado.
Privação crônica de sono e desregulação circadiana ativam resposta inflamatória sistêmica. Estudos mostram que uma única noite mal dormida aumenta marcadores inflamatórios mensuráveis no sangue. Quando isso se torna padrão por anos, você mantém inflamação crônica de baixo grau permanentemente ativada.
Inflamação crônica de baixo grau não produz sintomas dramáticos imediatos. Você não sente como sente apendicite aguda. Por isso é fácil ignorar. Mas ao longo de décadas, essa inflamação persistente causa dano acumulativo devastador.
Inflamação crônica está implicada em praticamente todas as doenças degenerativas modernas: aterosclerose e doenças cardiovasculares, resistência insulínica (essa, a mãe de praticamente todas as doenças crônicas) e diabetes tipo 2, neurodegeneração e demência, diversos tipos de câncer, depressão clínica. Não é coincidência que essas doenças eram raras em populações ancestrais e se tornaram epidêmicas na modernidade.
Você não está apenas envelhecendo naturalmente. Está ativamente acelerando deterioração através de inflamação que seu próprio corpo mantém porque você o colocou em ambiente alienígena.
Diferente de doenças autoimunes clássicas que são difíceis de tratar, inflamação crônica induzida por estilo de vida moderno é reversível. Mas exige que você pare de alimentar a guerra.
Primeiro: reconheça que sintomas vagos que você normalizou – cansaço persistente, dores articulares sem causa clara, recuperação lenta de resfriados, ganho de peso inexplicável, névoa mental, humor instável – não são apenas “parte de envelhecer”. São sinais de que seu corpo está em estado de inflamação crônica.
Segundo: entenda que seu corpo não está te sabotando maliciosamente. Está fazendo o melhor que pode com informações confusas. Sistema imunológico calibrado para ambiente paleolítico simplesmente não sabe como responder adequadamente a ultraprocessados, estresse crônico, sedentarismo, privação de sono. Então default para única resposta que conhece: inflamação.
Terceiro: mude sinais ambientais que você está enviando ao corpo. Não através de força de vontade heroica, mas através de redesenho deliberado de ambiente e hábitos.
Coma comida que seus ancestrais reconheceriam como comida. Não precisa ser dieta paleolítica dogmática, mas evite substâncias químicas que corpo interpreta como ameaças. Mova-se regularmente de forma que corpo foi desenhado para mover – caminhada longa, não apenas treino intenso compensatório. Durma em ambiente escuro e fresco, sincronize ritmo circadiano com luz natural quando possível. Gerencie estresse crônico não através de “relaxamento” forçado mas através de redução real de carga alostática.
Seu corpo é máquina de sobrevivência extraordinária que evoluiu durante centenas de milhares de anos. Mas foi otimizado para ambiente radicalmente diferente do mundo moderno. Quando você força essa máquina a operar em condições alienígenas, ela entra em modo de guerra contra si mesma.
Você não precisa voltar para savana. Mas precisa reconhecer descompasso entre biologia ancestral e realidade moderna. E fazer ajustes deliberados que permitam corpo operar sem estar perpetuamente em modo de combate. Porque ninguém pode viver bem em guerra civil fisiológica permanente.
Cuide da sua saúde física. Porque ninguém fará isso por você.