O anarquista na minha cabeça: décadas convivendo com Tourette

Saúde mental1 mês atrás16 Visualizações

Vou te contar algo que talvez nem minha família conheça em profundidade. Para você confiar no conhecimento que compartilho, preciso ser brutal e transparente. E essa transparência inclui falar sobre algo que moldou fundamentalmente quem sou hoje.

Tenho Síndrome de Tourette. Quem convive com essa condição sabe: é como ter um anarquista morando no seu cérebro. Alguém que, a qualquer momento, pode assumir controle parcial do seu corpo e fazer você dizer coisas, gesticular, emitir sons – tudo completamente fora da sua vontade consciente. Seu corpo age contra você. E não há nada que você possa fazer para impedir completamente.

Tenho vergonha disso? Hoje não. Se você me observar atentamente, provavelmente não verá nenhum comportamento estranho. Mas dos 5 aos 12 anos? Era absolutamente infernal.

Como o anarquista se instalou

Com apenas 3 ou 4 meses de vida, eu já era obeso – 11 quilos quando deveria ter uns 6. Minha mãe dizia que eu era um bebê ansioso. Vivia pedindo mais leite. Mamadeira enriquecida era minha melhor amiga.

A obesidade infantil passou muito rápido, mas a ansiedade permaneceu. E evoluiu para algo mais complexo.

Com 5 ou 6 anos, começaram os tiques nervosos. Piscar compulsivo. Movimentos repetitivos da cabeça. Sons guturais involuntários que eu não conseguia suprimir. Cacoetes que pareciam ridículos aos olhos alheios, mas que para mim eram impulsos irresistíveis. E quanto mais eu tentava controlar, mais intensos ficavam. É como tentar não pensar em um elefante rosa – o esforço de supressão só amplifica o impulso.

Dos 5 aos 12-13 anos, isso definiu minha vida. Tiques nervosos e cacoetes faziam parte vigorosa do meu cotidiano. E é impossível ter uma vida social saudável – como postula a Organização Mundial da Saúde – convivendo com isso numa sociedade que pune qualquer desvio do padrão.

O que é Tourette (de verdade)

Tourette é um distúrbio neurológico caracterizado por tiques motores e vocais. Não é psicológico. Não é “frescura”. Não é “falta de educação” ou “mania” que você pode simplesmente parar se quiser muito. É seu cérebro enviando sinais neurológicos que você não autorizou. Como ter um software rodando em background que ocasionalmente assume controle de funções motoras e vocais.

A ciência ainda não compreende completamente as causas, mas sabe que envolve alterações em circuitos específicos – especialmente nos gânglios da base e no córtex frontal, regiões responsáveis por controle motor e regulação de impulsos.

Descobri ao longo de décadas: Tourette piora dramaticamente com estresse, ansiedade, privação de sono e pressão social intensa. Melhora com relaxamento, sono adequado, atividade física regular e técnicas específicas de autorregulação nervosa. Mas nunca desaparece completamente.

A verdade que ninguém quer ouvir

Levei tempo absurdo pesquisando tratamentos, técnicas, criando hábitos elaborados na tentativa de me curar. Experimentei medicamentos, terapias comportamentais, técnicas de respiração, meditação profunda.

E aqui está a verdade incômoda: não há cura. Você aprende a controlar – parcialmente. O anarquista fica enjaulado, amordaçado, amarrado. Mas continua lá. A qualquer momento, o gatilho certo pode libertá-lo novamente: estresse intenso, noite mal dormida, situação de tensão extrema – e ele volta com força.

Quem tem Tourette entende perfeitamente.

Mas tem algo crucial aqui: controlar não é reprimir. Durante anos tentei simplesmente suprimir os tiques pela força bruta de vontade. Isso só agravava tudo. Criava tensão interna insuportável, é como segurar a respiração indefinidamente.

O que funcionou foi diferente: relaxamento, meditação, autossugestão. E desenvolver estratégias de redirecionamento, criar rituais pessoais de concentração, entender profundamente meus gatilhos e trabalhar preventivamente neles antes que explodissem.

O cérebro tribal no mundo moderno

Aqui entra algo que mudou radicalmente minha compreensão sobre Tourette e outras condições neurológicas: o conceito de descompasso evolutivo aplicado ao cérebro.

Nosso cérebro foi esculpido ao longo de milhões de anos para funcionar em ambiente tribal. Grupos pequenos de 30 a 150 pessoas. Sem pressão social constante. Sem julgamentos implacáveis de estranhos. Sem necessidade de “performar” socialmente o tempo todo diante de centenas de pessoas desconhecidas.

Vivíamos em ambientes previsíveis, com rotinas estáveis, cercados por pessoas que nos conheciam desde o nascimento. Não havia entrevistas de emprego, apresentações em público para plateia hostil, ou sensação perpétua de estar sendo avaliado e comparado.

Hoje? Megacidades com milhões de pessoas. Exposição constante a situações sociais novas. Necessidade de “vender sua imagem” continuamente. Avaliação e comparação implacáveis.

Condições como Tourette, ansiedade social generalizada, TDAH – em muitos casos refletem esse descompasso brutal entre um cérebro ancestral e as demandas absurdas do mundo moderno. Não é defeito do indivíduo. É sistema operacional antigo rodando em ambiente para o qual não foi projetado.

Isso não significa que essas condições são “culpa” da sociedade moderna, nem que podemos ignorá-las ingenuamente. Significa que compreender o contexto evolutivo nos permite desenvolver estratégias infinitamente mais eficazes.

O que décadas de convivência me ensinaram

Primeiro: aceitação não é resignação. Aceitar que tenho Tourette não significa desistir de melhorar. Significa parar de lutar estupidamente contra a realidade e começar a trabalhar estrategicamente com ela.

Segundo: redirecionamento funciona melhor que repressão. Quando sinto um tique emergindo, posso redirecioná-lo para algo menos perceptível socialmente. Posso focar em meus inputs autossugestivos e criar mentalmente um ambiente de alívio.

Terceiro: gerenciar gatilhos é mais eficaz que combater sintomas. Durmo rigorosamente bem. Mantenho rotina consistente de exercícios. Pratico técnicas de regulação do sistema nervoso. Evito situações de estresse desnecessário. Com isso, os tiques simplesmente aparecem radicalmente menos.

Quarto: vulnerabilidade é forma de poder. Durante anos escondi minha condição com vergonha profunda. Hoje falo mais abertamente. E descobri algo libertador: isso não só me alivia, mas também liberta pessoas ao redor que estão lidando com suas próprias batalhas invisíveis.

O anarquista continua aqui

Hoje, se você me observar em uma conversa, numa apresentação, em qualquer situação social, provavelmente não verá comportamento estranho. Mas isso custou décadas de trabalho árduo, autoconhecimento brutal e desenvolvimento sistemático de estratégias específicas.

O anarquista ainda mora aqui. Só aprendi a conviver com ele de forma que não interfira em minha vida.

E aqui está o que preciso que você entenda: você não precisa estar “consertado” para ter uma vida extraordinária. Precisa se compreender profundamente, se aceitar radicalmente e desenvolver suas próprias estratégias.

Para você que luta com seu próprio cérebro

Se você convive com qualquer condição neurológica – ansiedade paralisante, depressão recorrente, TDAH, Tourette, ou qualquer outra coisa que faça seu cérebro funcionar fora do padrão estreito que a sociedade considera “normal” – saiba disso: você não está quebrado.

Está tentando fazer um sistema operacional ancestral funcionar num mundo moderno irreconhecível para nossa fisiologia e genética. E, com conhecimento adequado, estratégias bem desenvolvidas e autocompaixão genuína, é completamente possível construir uma vida plena, produtiva e profundamente significativa.

Seu cérebro pode ser seu maior aliado ou seu pior inimigo. Tudo depende de quanto tempo você investe em compreendê-lo, de quanta honestidade você tem ao olhar para seus padrões, de quanto você está disposto a aceitar suas peculiaridades sem julgamento.

Cuide da sua saúde mental. Porque ninguém fará isso por você.

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